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sábado, 7 de abril de 2012

Quantas vozes

 por Luiz C. Checchia

para os amigos do Manjericão, de Porto Alegre

É tão interessante quanto assustador a forma como a criação e a execução artística atraí diversas vozes que querem falar por elas. São, em sua maioria, críticos, acadêmicos e comunicadores que transpõem sem pudores a linha que separa a reflexão sobre a obra e a interferência sobre ela. Dessa forma, tais vozes tornam-se "co-criadores", "juízes" e mesmo "carrascos" das obras.

Oras, é claro que a todos é dado o direito à reflexão, à crítica, ao posicionamento favorável ou desfavorável a respeito de uma obra de arte; não é saudável pensamos que temos que aceitar toda e qualquer criação artística simplesmente porque ela existe. Todavia, é fundamental e necessário que o crítico/acadêmico/comunicador se coloque na justa posição de mediador entre a obra e o público, debatendo questões técnicas, estéticas e mesmo éticas que a envolvem, sem, todavia, tomar o texto da mão do diretor e dizer ao elenco como é que as coisas devem ser feitas a partir de agora. Por outro lado, é cada vez mais premente que artistas e técnicos saiam da condição de "tarefeiros inspirados pelas musas" e dominem cada vez mais os intrumentos de análise e de crítica sobre a arte em geral e a sua produção em particular.

Se todas as vozes são necessárias para compor a multifacetada sociedade democrática e participativa que almenjamos todos, é mais que necessário evitarmos a cilada do chamado "discurso competente" - cuja voz troante e assertiva tende a ocupar todo o ambiente de debate - e passarmos a ouvir o que todos têm a dizer. Sobretudo, ouvirmos o que artistas competentes e experiêntes têm a dizer sobre sua obra e por meio dela.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A Força de um Coletivo

por Luiz C. Checchia





A Rede Brasileira de Teatro de Rua realizou seu décimo encontro na cidade paulista de Santos, entre os dias 26 e 30 de janeiro passado. Articuladores de onze estados brasileiros estiveram presentes debatendo suas realidades locais e demandas nacionais. Depois de tantas horas de debates intensos fica-nos uma certeza: é cada vez mais premente a necessidade de lutarmos pela causa da Arte Pública. Todo e qualquer produtor que desejar fazer de sua arte uma mercadoria tem o direito de fazê-lo; mas é fundamental que todo e qualquer artista que perceba sua arte como expressão de uma cultura possa oferecê-la gratuitamente aos povos em condições dignas de trabalho e existência.

Por isso, por crermos na arte como expressão dos povos, das culturas, da condição humana e suas contradições históricas e sociais é que a Rede Brasileira de Teatro de Rua reafirma sua luta pela arte pública e pelo direito ao trabalho digno de todos os artista. Mas é preciso que esse importante coletivo ao qual a Cia Teatro dos Ventos faz parte se fortaleça cada vez mais, agregando mais e mais articuladores por todo o país. 

Se esperamos por um Brasil sem miséria, que dele seja erradicada não somente a miséria econômica, mas também a simbólica. Que a nossa maior riqueza - a nosso cultura - seja valorizada e dignifique tanto o público quanto os artistas.


foto: Espetáculo A Farsa do Advogado Pathelin, com o  Grupo Rosa dos Ventos, direção Roberto Rosa.
Clic de Antônio Sobreira

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Por que Arte Pública?

por Luiz C. Checchia




O mundo vive um intenso processo de grandes mudanças. E embora eu creia que elas sejam, ao final das contas, mais um agito barulhento do que o anúncio de radicais transformações, o abalo global provoca algumas pertinentes e profundas reflexões. E espero que estas provoquem tantas outras ações.
Uma das primeiras reflexões que surge no horizonte é: não é mais possível avançarmos como uma sociedade saudável se mantivermo-nos mergulhados no "atomismo" comum à lógica capitalista. O atomismo é essa tendência ao isolamento, ao individualismo, tão comum hoje em dia. Sei que muitos dirão: "como isolamento? Tenho tantos amigos, vou a tantos lugares, vejo e converso com tanta gente!". Sim, tudo isso costuma ser verdade, temos uma vida social bem agitada hoje em dia graças a um economia mais estimulada, às redes sociais etc Mas, por outro lado, "nunca antes na história deste país" a busca por problemas de cunho social tem encontrado soluções tão individuais! Vejamos alguns: não temos um transporte público de qualidade? Ora, que cada um compre seu carro, tá tão fácil!; não há serviço público digno? ora o remédio e comprar um plano de saúde; faltam vagas nas universidades públicas? Que pague uma particular quem puder...e por aí vai. Devem ter percebido, pelo exposto, que quanto mais as soluções se individualizam, tanto mais elas implicam "eu posso tudo o que quiser, desde que possa pagar por isso."

Enfim, impera entre nós algo como "estamos juntos, mas se a coisa apertar, é um cada um por si amigável, ok?"

Creio que é nesse ponto que a questão da arte pública encontra com sua mais profunda e necessária demanda. Se desde o governo Lula temos avançado muito nas questões econômicas, permintindo que uma descomunal multidão de empobrecidos pudesse, pela primeira vez, tornar-se consumidores, é preciso que tais pessoas também tornem-se cidadãos. E não apenas na acepção burguesa do termo, mas numa interpretação plena, progressista, de radicalização democrática. cidadania significa a convivência com o contrário, com o diferente, a crítica e a auto-crítica construtiva, o exercício da colaboração e da solidariedade.

Epara isso é preciso a reelaboração simbólica constante, em outras palavras, significa rever, revisitar e ressignificar valores, crenças, práticas. Significa promover a arte do encontro civil, e não somente público. As pessoas, nós todos, necessitamos compartilhar experiências estéticas/éticas (pois estética e ética são indissociáveis) que nos provoque reflexões, risos, apreensões, interpretações. E precisamos que isso seja feito no coletivo, para que possamos olhar os estranhos ao lado, e o mundo que nos cerca, com novos olhos. Que possamos, ao fim da experiência estética/ética perceber as relações com novas e revigoradas inquietações.

E tais práticas precisam ser constantes, cotidianas. E não podem ocorrer no âmbito da mercadoria. Por que toda e qualquer mercadoria, além do valor de uso, implica também um valor de troca, e as trocas são realizadas sempre, e sempre serão, tendo como referência o "poder" de troca de cada pessoa. Ou seja, o "quanto você pode pagar" pelo que quer levar. Mas se formos divididos, logo de cara, por "poderes de compra", como a experiência estética poderá promover a arte do encontro entre as pessoas que compõe a sociedade? Que reelaboração estética poderá promover, senão a reprodução das idéias já estabelecidas e aceitas por quem pode pagar? afinal, se preciso do dinheiro de quem paga, não seria prudente dizer que o ele não quer ouvir...

Assim, apenas a realização da arte pública pode assegurar a construção de uma nova sociedade. Somente por meio da elaboração e a reelaboração não "mercadologizada" dos signos e símbolos de nossa cultura podemos nos transformar de consumidores em cidadãos plenos. Por isso, defender a arte pública, em detrimento da arte mercadoria, é dar condições para que o ser humano torne-se, cada vez mais, humano.


Referências bibliográficas:
modernidade Líquida, Zygmunt Bauman
Educação e Reflexão, Pierre Furter

sábado, 17 de dezembro de 2011

Uma Nova História

A Cia Teatro dos Ventos está em Hortolândia, interior de SP, participando do 3º Fórum do Interior: Artes e Políticas Públicas. Esse encontro é fundamental para o teatro paulista porque está congregando artistas de teatro de diversas cidades do interior, grande são Paulo e litoral, e seu principal objetivo é marcar um ponto de partida para a luta por novas e mais justas políticas públicas para essas regiões do estado de SP. Na verdade, indo mais além ainda, trata-se de construir novos olhares e percepções para a produção cênica de todo o estado, dignificando-a.

É importante salientar que há um esmagador desnível no acesso de verbas, programas e editais entre essas cidades e a cidade de São Paulo. E embora se costume usar o fato da produção paulistana ser muito maior que a do restante do estado (justificando maior aporte de verbas públicas), também é preciso perceber que a dificuldade de acesso a tais verbas, programa e editais impede o crescimento e a manutenção da realização artística nas demais cidades. Portanto, mais do que a ampliação das atuais políticas públicas, é preciso que se desenvolva uma nova lógica para elas. É preciso que se busque corrigir tal distorção histórica. É preciso que as políticas públicas sejam pautadas no sentido da democratização do acesso a recursos e programas, que as circulações de espetáculos sejam mais que um passar sem troca estética e ideológica de grupos e artistas pelas diversas cidades do estado e, por fim, que viver de sua arte, em sua cidade, seja uma opção real para cada artista do estado de São Paulo.

Todavia, tais conquistas fazem parte de uma luta que será constante, como bem disse a diretora Tiche Vianna de Campinas. Por isso, é fundamental que se fomente em cada cidade do estado de São Paulo discussões, debates e reflexões envolvendo tantos os artistas quanto os produtores, os grupos, e os apreciadores de teatro. A Cia Teatro dos Ventos, em Osasco, sua cidade, tem provocado e participado de debates e reflexões junto aos coletivos Arte na Pólis e Multirão Cultural na Quebrada; e, mais recentemente, tem se empenhado na formação de nossa setorial de teatra.

Enfim, muito o que fazer, e um mundo inteiro para mudar.

O momento é esse e a hora é já!!


terça-feira, 22 de novembro de 2011

O TEATRO COLABORATIVO, por Luiz C. Checchia

A forma como vivenciamos o teatro hoje foi consolidada no complexo período que compreende o século XVIII até o século atual. Têm-se dado, nesse intervalo de tempo, o desenvolvimento e amadurecimento dos paradigmas hegemônicos da modernidade ocidental, dentre eles: o modo de produção capitalista; a primazia da individualidade; a complexa divisão social do trabalho; a globalização amistosa ou forçada das relações econômicas, sociais, políticas e culturais; a urbanização das sociedades; e, ainda, os avanços tecnológicos e burocráticos que caracterizam as sociedades burguesas. Por ouro lado, se esses paradigmas se tornaram hegemônicos, outros valores e práticas antigas, forjados em séculos de convivência comunal, solidária e cooperativa entre as pessoas não se perderam de todo, mantendo-se ainda vivas em diversas comunidades rurais, bem como nas periferias dos centros urbanos, locais para onde massas de pessoas criadas nos campos convergiram em busca de trabalho no longo processo de urbanização.
Portanto, sendo as sociedades modernas ocidentais formadas de interesses e princípios tão diversos e dividindo-se em formas diferentes de ver e sentir o mundo e nele atuar, também serão diversas as formas que motivarão a prática teatral, bem como os seus meios de organização e realização. Uma dessas formas, que chamaremos aqui de teatro empresa tornou-se hegemônica (ao menos nos centros urbanos e arredores), sendo ela gerida e inserida na cultura que se forma, por sua vez, sob os paradigmas modernos. As características gerais do teatro empresa são, entre outras: montagens teatrais como mercadorias, carregadas de valores agregados; organização sob estrita divisão social do trabalho, com relações estanques entre direção, elenco, técnicos, figurinistas, cenógrafos etc; utilização de espaços específicos para suas apresentações que permitem o máximo aproveitamento de recursos técnicos (também utilizados como valor agregado) e o controle sobre o público. Entretanto, se o teatro empresa é a forma teatral hegemônica em nossas sociedades modernas ocidentais outras formas mais antigas e populares foram recuperadas e re-elaboradas por artistas e grupos que nelas encontraram possibilidades de fazer teatro fora da lógica dominante; tratavam-se de formas cujos procedimentos de organização e realização era praticamente artesanais, motivados por um espírito coletivo e solidário. O que hoje chamamos de teatro colaborativo é fruto desse processo de recuperação e re-elaboração das antigas e populares formas teatrais.

Herdeiro de diversas experiências teatrais que remontam às antigas organizações populares de grupos e companhias, o chamado teatro colaborativo não é muito mais do que uma forma de relacionamento entre pessoas dispostas à pratica teatral baseada no diálogo, construção do consenso e na colaboração mútua; se o teatro empresa baseia-se na estrita e estanque divisão de funções, no teatro colaborativo essas funções, se bem que preservadas, dialogam entre si, e cada artistas que assume uma delas não deixa de colaborar com os demais integrantes de um mesmo coletivoi. Dessa forma, as personagens já não são mais “propriedade” de determinados atores ou atrizes tidos como mais talentosos ou notórios mas, ao contrário, podem ser trocadas entre eles a qualquer momento; todos podem experimentar e contribuir mutuamente com os processos de construção uns dos outros. Assim, se de certa forma se percebe a identidade criativa do diretor ou de um integrante do elenco expressa no trabalho em cena, sabe-se também que ele é fruto de sua vivência com os demais parceiros e parceiras no processo de montagem do espetáculo. Ou seja, ao mesmo tempo em que se percebe a identidade de cada um dos participantes, a montagem não tem a “cara” do diretor ou do ator, mas sim a “cara” do grupo. Torna-se evidente então que uma certa distinção de valores entre as funções teatrais (ou mesmo entre atores e atrizes de acordo com sua notoriedade junto ao grande públicoii), tão cara e necessária ao teatro empresa, deixa de existir no teatro colaborativoiii. Normalmente, mas não necessariamente, o teatro colaborativo é realizado no âmbito do “teatro de grupoiv”, já que é comum que a colaboração (acertada como prática vigente de um processo de montagem) seja fruto de uma relação mais duradoura do que a de uma produção ou de uma temporada teatral; na verdade, é preciso um bom tempo de convivência mutua para que um grupo construa entre si uma relação de confiança e sinergia. Nesse processo, valores e práticas se constroem na lida cotidiana, resultando na personalidade do grupo, sua identidade coletiva. São valores e práticas que habitualmente transbordam a vivencia dos artistas em salas de ensaio e alcançam também seu público e a região em que se instalam, promovendo a integração entre artistas e população local; em suma, passam a participar de uma mesma comunidadev.

Estabelecer relações com as comunidades nas quais estão inseridos não é o único aspecto político assumido por grupos praticantes de teatro colaborativo. É comum ao teatro colaborativo um certo senso ético que busca no fazer artístico um sentido social. De certa forma, os praticantes de teatro colaborativo, por discordarem e colocarem-se à margem da lógica hegemônica do capital, buscam, por meio de sua arte, promover ou provocar possíveis mudanças de paradigmasvi. Por isso, para muitos praticantes desta modalidade teatral ela se constitui ou participa de num projeto de transformação social e política. Seja como for, mesmo que não leve a cena temas sobre transformações e revoluções, por exemplo, o simples fato de se buscar uma outra organização que não a hegemônica já se constitui numa atitude de resistência. Além disso, é comum também que a prática organizativa faça parte do horizonte político dos praticantes de teatro colaborativo, por isso há tantos coletivos que agregam diversos grupos que se formam em torno de demandas comuns. Tratam-se desde simples confrarias até coletivos de pressão política, com poder de provocar mudanças em leis e estabelecer novas políticas públicas. Seja como for, é notório que muitos grupos de teatro colaborativo tenham por princípio o envolvimento político em sua sociedade.

Como dito acima, se o teatro colaborativo constitui-se numa atitude, num posicionamento ético perante o mundo, ele não constitui uma estética, ou uma forma artística acabada. Pelo contrário, pode ser praticado por artistas e grupos das mais variadas opções estéticas: teatro de rua, de caixa, de espaços alternativos, de animação, de mímica, até mesmo por grupos de circo e dança. Enfim, o espírito colaborativo pode invadir todas as formas de artes cênicas, ou outras artes, já que há experiências colaborativas entre artistas plásticos, por exemplo. Mas se não se constitui numa forma estética, propriamente dito, há algumas delas com as quais muitos grupos de teatro colaborativo estabelecem uma forte aproximação, como os teatros épico-brechtiano e o popular, e, ainda, com o teatro antropológico. Outra característica intrínseca é a constante prática da pesquisa estética e ética. Dessa forma, se o teatro colaborativo não é uma estética teatral em si, é comum que cada grupo desenvolva sua estética própria, notadamente a partir das já apontadas. Há que se apontar ainda outra sua peculiaridade que é a forma como seus praticantes não se preocupam com notoriedade e distinção, o que evita uma certa submissão da personagem à personalidade do ator ou da atriz; em outras palavras, a personagem não é meio para a realização personalista do intérprete, mas ao contrario disto é o intérprete que se coloca a serviço de uma idéia ou mensagem que se queira passar com a peça. Mas isso não deve ser confundido com a despersonalização ou neutralidade comum ao teatro realista (carro chefe do teatro empresa) que se exige do ator e da atriz em nome de uma valorização da personagem; no teatro colaborativo é parte da rotina que elenco, direção, dramaturgo ou de qualquer outro evitem o culto à personalidade, mas se é sempre solicitado que a personalidade seja parte dos elementos de criação e construção da obra como um todo.

Evidentemente não é preciso seguir estritamente a risca as descrições acima para se fazer teatro colaborativo. Como já afirmamos, o teatro colaborativo é muito mais uma forma de relacionamento entre praticantes teatrais do que um modelo fechado de produção. Fica evidente também que esse processo não tem nada de mecânico, ao contrário, se constitui na lida diária, na vivência coletiva constante, no cotidiano da vida de um grupo ou companhia teatral, e é mais evidente ainda que os humores e caprichos das pessoas envolvidas criam situações de conflitos, diferenças de posicionamento etc, que só podem ser dirimidas às custas do diálogo e da construção permanente do consenso. Seria tolice dizer que nunca alguém desistiu de tal forma de produção teatral, seja por falta de identificação com ele, seja pela dificuldade de lidar com a própria autonomia ou qualquer outra razão. Mas é notório, pelo tempo de existência dos gruposvii, e pelo tempo em que muitos de seus artistas estão envolvidos com esse modo de produção (seja no mesmo grupo, ou indo de um para outro), que ele tornou-se o habitat natural de um número imenso de artistas/praticantes fiéis. O teatro colaborativo é, de certa forma, uma resposta, uma ação de resistência a uma organização social e econômica hegemônica e que se pretende única na forma e no conteúdo; sendo assim, a despeito das múltiplas preocupações e demandas inerentes a cada grupo, o teatro colaborativo em si tem a importante e imprescindível função de garantir o espectro democrático das sociedades modernas, apresentando uma alternativa de arte e de vida.



NOTAS
i Um bom exemplo dessa forma de relação de trabalho está nas palavras do britânico Peter Brook, um dos mais importantes diretores da atualidade. Embora não faça uso do termo “colaborativo”, Brook tem sua produção pautada pela troca e pelas contribuições mútuas, todavia, cada qual mantém suas funções preservadas, como ele descreve em suas memórias: “Assim, a peça tornou-se uma verdadeira criação colaborativa entre quatro atores dedicados – Yoshi Oida, Sotegui Kouyaté, Maurice Benichou e David Bennent –, juntos com o músico que estivera especialmente próximo de nós ao longo dos anos, Mahmoud Trabrizi-Zadeh, assim como Marie-Hélène e eu (…) Então um trabalho mais familiar pôde começar, com Marie-Hélène escrevendo e adaptando as palavras que ouvíamos serem ditas e os atores usando as sus técnicas pessoais para projetar, de modo convincente a um observador externo, as áreas misteriosas às quais éramos conduzidos” (BROOK:2000,306)

ii Notoriedade que não deixa de se constituir, na lógica do teatro empresa (que é, ao fim e ao cabo, a lógica do capital) em um valor agregado, um valor de troca.

iii Como afirma o professor José Manuel Lázaro de Ortecho (ORTECHO, 2010, 23): “a hierarquia dramaturgo – produtor/encenador – atores – técnicos é desmontada”.

ivUtilizaremos aqui o conceito de grupo apresentado por Kil Abreu: “grupo/agrupamento – a primeira coisa é que um Grupo de teatro – nos sinaliza a prática dos anos recentes – não é o mesmo que um agrupamento de artistas que se reúnem para fazer um trabalho determinado. O que marca a existência do grupo, no sentido que nos interessa, é uma Experiência comum colocada em perspectiva. Qual seja, a de um tipo de organização que não tem como finalidade a criação de pontual de um evento artístico, ainda que um evento, um espetáculo, por exemplo, possa estar entre os planos, como de fato, quase sempre está. Trata-se, antes, de um projeto estético, de um conjunto de práticas marcadas pelo procedimento processual e em atividade continuada, pela experimentação e pela especulação criativa, que pode inclusive se desdobrar ou alimentar desejos de intervenção de outra ordem que não a estritamente artística.”

v Por isso é comum que os grupos “adotem" a comunidades que os abriguem, e com um pouco de sorte e muita dedicação, sejam por elas “adotados”. Como podemos ver nas ações do grupo Pombas Urbanas, segundo informações em seu sítio eletrônico: “Com sua vinda à Cidade Tiradentes em janeiro de 2004, o grupo mergulhou no universo do desemprego, exclusão, da deterioração do ser humano em busca de sobrevivência. Durante 3 anos, dedicou-se intensamente à estruturação do Centro Cultural Arte em Construção e em 2.007, realizou a montagem de um novo espetáculo, ‘Histórias Para Serem Contada’ que deu voz a muitas das histórias e conflitos que o grupo, vivendo no bairro Cidade Tiradentes, acompanhou de perto. É desta forma que os integrantes do grupo Pombas Urbanas compreendem e exercem sua condição de artistas: situando sua pesquisa e produção teatral junto à sociedade com o desenvolvimento de propostas práticas e concretas de acesso à Arte, desenvolvimento de conhecimentos e ferramentas para que populações historicamente marginalizadas possam produzir teatro e refletir sobre sua realidade por meio da Arte.”

vi Segundo o dramaturgo Luís Alberto de Abreu, ele próprio um dramaturgo que trabalha em processos colaborativos “a função social de um artista está intimamente ligada à importância, sempre menosprezada, das linguagens artísticas na transformação do ser humano e da sociedade (…) Querendo ou não, os artistas têm poder e responsabilidade no que se refere à fixação dos valores presentes na transformação do mundo ou em sua manutenção” (ABREU: 2010,29)

vii Para se ter noção do tempo de existência de alguns grupos: Grupo Pombas Urbanas, 22 anos de existência (http://www.pombasurbanas.org.br/); Buraco d'Oráculo, 10 anos (http://www.buracodoraculo.com.br/); Brava Companhia, 10 anos (http://blogdabrava.blogspot.com/); Núcleo Pavanelli, 11 anos (http://www.nucleopavanelli.com.br/site/historico); Dolores boca Aberta Mecatrônica de Artes 09 anos (http://doloresbocaaberta.blogspot.com/2009/06/oficina-de-teatro-no-dolores.html); Pia Fraus, 25 anos (http://www.piafraus.com.br/perfil.php?action=historico); Parlapatões Patifes e Paspalhões, 21 anos (http://www2.uol.com.br/parlapatoes/espetaculos/historia/index.htm). Esses são alguns grupos de referência, apenas em são Paulo, entre tantos outros grupos pelo país todo.

FOTO
Henri Cartier-Bresson

BIBLIORAFIA
ABREU, Kil. A Dialética das condições e a fatura estética no teatro de grupo. In Subtexto revista de teatro do Galpão Cine Horto. Ano 5, dez 08, número 05.

ABREU, Luís Alberto de. O Dramaturgo e suas funções. Rebento: revista de artes do espetáculo/ Universidade Paulista “Julio de Mesquita Filho”. Instituto de Artes, São Paulo. Número 2, julho de 2010

BROOK, Peter. Fios do tempo. Ed. Bertrand Brasil. São Paulo. 1998

ORTECHO, José Manuel lázaro de. A democratização da dramaturgia no teatro contemporâneo. Rebento, revista de artes do espetáculo. São Paulo. Número 2, julho de 2010

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

TEATRO DE RUA OU TEATRO NA RUA? por Zeca Sampaio

Esse texto foi escrito pelo camarada Zeca Sampaio, fruto de sua reflexão após o encontro do pessoal do teatro de rua em Santos. Vale a pena uma boa e atenta leitura....

TEATRO DE RUA OU TEATRO NA RUA?
Zeca Sampaio

       Será esta uma questão meramente acadêmica? Será que estamos ficando sisudos?  Que diferença faz uma preposiçãozinha, “de” ou “na”?
      
       Parece que para algumas pessoas há uma diferença e essa diferença parece ter importância. Vale apena tentar entender um pouco.
      
      Se há um “Teatro” que é teatro em qualquer lugar, obviamente ele pode ser feito na rua, no circo, nas escolas, nos galpões das associações de bairro, ou no Teatro Municipal sem que haja uma diferença fundamental. O que o caracterizaria seria a sua qualidade pura e simples. Existiria o bom e o mau teatro e ponto.
     
       Agora, um “teatro de rua” supõe um teatro que não é de rua, que vou chamar de teatro de palco, apenas para facilitar. O que caracteriza então esse teatro de palco, como diferente do teatro de rua?
    
      Poderíamos começar por muitas vias, mas eu gostaria de pensar primeiro no tema da proteção. O teatro de palco é um teatro protegido, resguardado pela quarta parede, pela luz apagada na platéia, mas especialmente pela convenção que nos assegura que o público não vai invadir o espetáculo, não vai interferir, não vai interromper, nem abandonar seu papel de platéia. Salvo em raríssimas exceções, o artista no palco está seguro. De acordo com a tradição do teatro é ele o senhor do espaço, quem comanda as ações, quem diz as verdades, quem é iluminado pelas musas e a quem se deve reverência e submissão. Ao público, resta assistir tudo quietinho, mesmo que seja um tédio, e aplaudir no final – de preferência de pé para sentir que esteve presente a um evento importante.

    A proteção desse teatro é o equivalente – não é a mesma coisa, mas corresponde – ao muro do condomínio, aos seguranças do Shopping Center. No mundo da cultura são construídos muros que separam a elite culta, talentosa, iluminada dos pobres mortais a quem cabe apenas o papel de assistência passiva e de fãs. O egocentrismo dos artistas (não só de artistas, mas de intelectuais, professores e outros donos da verdade) muitas vezes facilita o caminho de construção desses castelos murados, verdadeiros condomínios de luxo da cultura. Falando em sociedade dividida...

   Na rua a conversa é outra. A rua não oferece esse tipo de proteção tão facilmente. Aqui a convenção é falha, o espaço é aberto e interfere, o público se mistura.

   Quer dizer que o teatro na rua vai ser sempre um teatro sem o muro? Não necessariamente. Nós podemos ir pra rua e lutar para manter o nosso reduto de proteção. Nós fazemos isso sempre que nos colocamos em posição de elite, de superioridade; quando, mesmo politizados e levando mensagens revolucionárias em nossos espetáculos, tratamos nosso público como ignorantes alienados que precisam ser iluminados pela nossa sapiência; quando utilizamos métodos de proteção que nos colocam “acima e afora da manada”; quando o diretor diz ao ator o que ele deve fazer em vez de ajudá-lo a descobrir o que quer dizer; quando nos fechamos em discussões teóricas infindas, só compartilhadas pelos iniciados (o que justifica o estranhamento com a própria questão discutida aqui); enfim, sempre lógica do sistema de divisão de classes e a tradição do coronelato interfiram com as nossas boas intenções.

    Por outro lado, grupos e atores que vão para a rua por necessidade, oportunidade ou acaso podem ter uma experiência reveladora. Na rua, o muro se desnaturaliza, ele não é o óbvio. Como um adolescente de classe média alta que seja obrigado por um acaso a andar de ônibus e de repente percebesse que há vida fora do Shopping Center, o artista que vai para a rua pode descobrir que há um muro do qual ele nada sabia. Um muro de proteção que na verdade serve para encarcerá-lo.

    Fazer teatro de rua então, diferentemente de fazê-lo apenas na rua, seria desmontar o muro, lutar contra o muro e entrar na área do perigo. Fazer teatro de rua, como diria o outro, é um tanto arriscoso.

    Que perigos são esses?

Vejamos por um outro caminho. Eu gostaria agora de retomar uma questão proposta por Zigmunt Bauman no livro “Vidas Desperdiçadas” e que serviu de ponto de partida para a montagem do espetáculo “Arrumadinho” da Trupe Olho da Rua: você é Projeto ou Refugo?

    Segundo Bauman o sistema vigente (vou dizer o palavrão, desculpem os mais pudicos), o capitalismo globalizado, reino da barbárie, exige um comprometimento com o seu Projeto, ou seja, coloca as coisas em termos de uma dualidade: ou se é Projeto, ou se é Refugo. E o que é Projeto hoje, amanhã será Refugo, regra essencial do consumo.

     Vamos convir que o teatro de rua esteja longe de fazer parte do Projeto. Isso significa que sempre estaremos sendo empurrados para o papel de Refugo. Mas essa dualidade proposta pelo sistema é, como sempre, ideológica e um truque sujo. É claro que sempre há alternativas, é claro que não podemos dividir o mundo, na lógica bushiniana (desculpem o outro palavrão. Quem manda mexer na sujeira?), entre os que são nossos amigos e os inimigos.
    
    Além de Projeto e Refugo é possível se colocar na posição de Resistência.

    Acho que quando se tenta separar o teatro de rua de um possível teatro na rua o que se está tentando evidenciar é esse sentido de Resistência. Um teatro que resiste ao muro, que quer manter, ou estabelecer, ou restabelecer um contato, uma interação, talvez formar de novo um lugar comum – comum unidade? – para fugir à lógica do sistema e, uma vez fora dela, poder mostrá-la como o que é: ideologia naturalizada. Um anti-Projeto que expõe, que critica, que duvida, que desvela.

     A questão é: quanto tempo se aguenta resistir? É possível permanecer nessa posição?

 O anti-Projeto corre o risco de se tornar Projeto. Um movimento forte estabelece pontes com as comissões, espaços para verbas, ganha um lugar ao sol, o teatro de rua passa a ser uma Categoria, com “C” maiúsculo. Quem sabe um dia, para concorrer a uma verba de teatro de rua o grupo precise de um aval da comissão permanente fiscalizadora do movimento de teatro de rua: CPFMTR! Eita sigla bonita!

     Por outro lado, ninguém quer viver a vida toda sem condições mínimas de sobrevivência. Os grupos precisam de espaços para trabalhar, os artistas precisam de dinheiro para viver. Permanecer alheio ao mundo oficial, ao Projeto, pode significar a porta de entrada para o Refugo.

     Como fazer para que a resistência seja uma atitude que possa permanecer? Como organizar a horda da resistência sem se tornar um exercito regular?

    Resistir enquanto bando é possível enquanto existe o ímpeto que contrabalança a eficiência do exercito hierarquizado, afinal os soldados lutam contra seu coração. A história tem demonstrado, entretanto, que os bandos tendem a se dispersar, entrar em conflitos internos e depois de ganhar muitas batalhas serem vencidos pela constância, pela disciplina e pela sedução do sistema.

    Ainda assim, é resistir ou desistir. Ou será essa outra falsa dualidade?

“Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito
como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural
nada deve parecer impossível de mudar”.
Bertolt Brecht