terça-feira, 22 de novembro de 2011

O TEATRO COLABORATIVO, por Luiz C. Checchia

A forma como vivenciamos o teatro hoje foi consolidada no complexo período que compreende o século XVIII até o século atual. Têm-se dado, nesse intervalo de tempo, o desenvolvimento e amadurecimento dos paradigmas hegemônicos da modernidade ocidental, dentre eles: o modo de produção capitalista; a primazia da individualidade; a complexa divisão social do trabalho; a globalização amistosa ou forçada das relações econômicas, sociais, políticas e culturais; a urbanização das sociedades; e, ainda, os avanços tecnológicos e burocráticos que caracterizam as sociedades burguesas. Por ouro lado, se esses paradigmas se tornaram hegemônicos, outros valores e práticas antigas, forjados em séculos de convivência comunal, solidária e cooperativa entre as pessoas não se perderam de todo, mantendo-se ainda vivas em diversas comunidades rurais, bem como nas periferias dos centros urbanos, locais para onde massas de pessoas criadas nos campos convergiram em busca de trabalho no longo processo de urbanização.
Portanto, sendo as sociedades modernas ocidentais formadas de interesses e princípios tão diversos e dividindo-se em formas diferentes de ver e sentir o mundo e nele atuar, também serão diversas as formas que motivarão a prática teatral, bem como os seus meios de organização e realização. Uma dessas formas, que chamaremos aqui de teatro empresa tornou-se hegemônica (ao menos nos centros urbanos e arredores), sendo ela gerida e inserida na cultura que se forma, por sua vez, sob os paradigmas modernos. As características gerais do teatro empresa são, entre outras: montagens teatrais como mercadorias, carregadas de valores agregados; organização sob estrita divisão social do trabalho, com relações estanques entre direção, elenco, técnicos, figurinistas, cenógrafos etc; utilização de espaços específicos para suas apresentações que permitem o máximo aproveitamento de recursos técnicos (também utilizados como valor agregado) e o controle sobre o público. Entretanto, se o teatro empresa é a forma teatral hegemônica em nossas sociedades modernas ocidentais outras formas mais antigas e populares foram recuperadas e re-elaboradas por artistas e grupos que nelas encontraram possibilidades de fazer teatro fora da lógica dominante; tratavam-se de formas cujos procedimentos de organização e realização era praticamente artesanais, motivados por um espírito coletivo e solidário. O que hoje chamamos de teatro colaborativo é fruto desse processo de recuperação e re-elaboração das antigas e populares formas teatrais.

Herdeiro de diversas experiências teatrais que remontam às antigas organizações populares de grupos e companhias, o chamado teatro colaborativo não é muito mais do que uma forma de relacionamento entre pessoas dispostas à pratica teatral baseada no diálogo, construção do consenso e na colaboração mútua; se o teatro empresa baseia-se na estrita e estanque divisão de funções, no teatro colaborativo essas funções, se bem que preservadas, dialogam entre si, e cada artistas que assume uma delas não deixa de colaborar com os demais integrantes de um mesmo coletivoi. Dessa forma, as personagens já não são mais “propriedade” de determinados atores ou atrizes tidos como mais talentosos ou notórios mas, ao contrário, podem ser trocadas entre eles a qualquer momento; todos podem experimentar e contribuir mutuamente com os processos de construção uns dos outros. Assim, se de certa forma se percebe a identidade criativa do diretor ou de um integrante do elenco expressa no trabalho em cena, sabe-se também que ele é fruto de sua vivência com os demais parceiros e parceiras no processo de montagem do espetáculo. Ou seja, ao mesmo tempo em que se percebe a identidade de cada um dos participantes, a montagem não tem a “cara” do diretor ou do ator, mas sim a “cara” do grupo. Torna-se evidente então que uma certa distinção de valores entre as funções teatrais (ou mesmo entre atores e atrizes de acordo com sua notoriedade junto ao grande públicoii), tão cara e necessária ao teatro empresa, deixa de existir no teatro colaborativoiii. Normalmente, mas não necessariamente, o teatro colaborativo é realizado no âmbito do “teatro de grupoiv”, já que é comum que a colaboração (acertada como prática vigente de um processo de montagem) seja fruto de uma relação mais duradoura do que a de uma produção ou de uma temporada teatral; na verdade, é preciso um bom tempo de convivência mutua para que um grupo construa entre si uma relação de confiança e sinergia. Nesse processo, valores e práticas se constroem na lida cotidiana, resultando na personalidade do grupo, sua identidade coletiva. São valores e práticas que habitualmente transbordam a vivencia dos artistas em salas de ensaio e alcançam também seu público e a região em que se instalam, promovendo a integração entre artistas e população local; em suma, passam a participar de uma mesma comunidadev.

Estabelecer relações com as comunidades nas quais estão inseridos não é o único aspecto político assumido por grupos praticantes de teatro colaborativo. É comum ao teatro colaborativo um certo senso ético que busca no fazer artístico um sentido social. De certa forma, os praticantes de teatro colaborativo, por discordarem e colocarem-se à margem da lógica hegemônica do capital, buscam, por meio de sua arte, promover ou provocar possíveis mudanças de paradigmasvi. Por isso, para muitos praticantes desta modalidade teatral ela se constitui ou participa de num projeto de transformação social e política. Seja como for, mesmo que não leve a cena temas sobre transformações e revoluções, por exemplo, o simples fato de se buscar uma outra organização que não a hegemônica já se constitui numa atitude de resistência. Além disso, é comum também que a prática organizativa faça parte do horizonte político dos praticantes de teatro colaborativo, por isso há tantos coletivos que agregam diversos grupos que se formam em torno de demandas comuns. Tratam-se desde simples confrarias até coletivos de pressão política, com poder de provocar mudanças em leis e estabelecer novas políticas públicas. Seja como for, é notório que muitos grupos de teatro colaborativo tenham por princípio o envolvimento político em sua sociedade.

Como dito acima, se o teatro colaborativo constitui-se numa atitude, num posicionamento ético perante o mundo, ele não constitui uma estética, ou uma forma artística acabada. Pelo contrário, pode ser praticado por artistas e grupos das mais variadas opções estéticas: teatro de rua, de caixa, de espaços alternativos, de animação, de mímica, até mesmo por grupos de circo e dança. Enfim, o espírito colaborativo pode invadir todas as formas de artes cênicas, ou outras artes, já que há experiências colaborativas entre artistas plásticos, por exemplo. Mas se não se constitui numa forma estética, propriamente dito, há algumas delas com as quais muitos grupos de teatro colaborativo estabelecem uma forte aproximação, como os teatros épico-brechtiano e o popular, e, ainda, com o teatro antropológico. Outra característica intrínseca é a constante prática da pesquisa estética e ética. Dessa forma, se o teatro colaborativo não é uma estética teatral em si, é comum que cada grupo desenvolva sua estética própria, notadamente a partir das já apontadas. Há que se apontar ainda outra sua peculiaridade que é a forma como seus praticantes não se preocupam com notoriedade e distinção, o que evita uma certa submissão da personagem à personalidade do ator ou da atriz; em outras palavras, a personagem não é meio para a realização personalista do intérprete, mas ao contrario disto é o intérprete que se coloca a serviço de uma idéia ou mensagem que se queira passar com a peça. Mas isso não deve ser confundido com a despersonalização ou neutralidade comum ao teatro realista (carro chefe do teatro empresa) que se exige do ator e da atriz em nome de uma valorização da personagem; no teatro colaborativo é parte da rotina que elenco, direção, dramaturgo ou de qualquer outro evitem o culto à personalidade, mas se é sempre solicitado que a personalidade seja parte dos elementos de criação e construção da obra como um todo.

Evidentemente não é preciso seguir estritamente a risca as descrições acima para se fazer teatro colaborativo. Como já afirmamos, o teatro colaborativo é muito mais uma forma de relacionamento entre praticantes teatrais do que um modelo fechado de produção. Fica evidente também que esse processo não tem nada de mecânico, ao contrário, se constitui na lida diária, na vivência coletiva constante, no cotidiano da vida de um grupo ou companhia teatral, e é mais evidente ainda que os humores e caprichos das pessoas envolvidas criam situações de conflitos, diferenças de posicionamento etc, que só podem ser dirimidas às custas do diálogo e da construção permanente do consenso. Seria tolice dizer que nunca alguém desistiu de tal forma de produção teatral, seja por falta de identificação com ele, seja pela dificuldade de lidar com a própria autonomia ou qualquer outra razão. Mas é notório, pelo tempo de existência dos gruposvii, e pelo tempo em que muitos de seus artistas estão envolvidos com esse modo de produção (seja no mesmo grupo, ou indo de um para outro), que ele tornou-se o habitat natural de um número imenso de artistas/praticantes fiéis. O teatro colaborativo é, de certa forma, uma resposta, uma ação de resistência a uma organização social e econômica hegemônica e que se pretende única na forma e no conteúdo; sendo assim, a despeito das múltiplas preocupações e demandas inerentes a cada grupo, o teatro colaborativo em si tem a importante e imprescindível função de garantir o espectro democrático das sociedades modernas, apresentando uma alternativa de arte e de vida.



NOTAS
i Um bom exemplo dessa forma de relação de trabalho está nas palavras do britânico Peter Brook, um dos mais importantes diretores da atualidade. Embora não faça uso do termo “colaborativo”, Brook tem sua produção pautada pela troca e pelas contribuições mútuas, todavia, cada qual mantém suas funções preservadas, como ele descreve em suas memórias: “Assim, a peça tornou-se uma verdadeira criação colaborativa entre quatro atores dedicados – Yoshi Oida, Sotegui Kouyaté, Maurice Benichou e David Bennent –, juntos com o músico que estivera especialmente próximo de nós ao longo dos anos, Mahmoud Trabrizi-Zadeh, assim como Marie-Hélène e eu (…) Então um trabalho mais familiar pôde começar, com Marie-Hélène escrevendo e adaptando as palavras que ouvíamos serem ditas e os atores usando as sus técnicas pessoais para projetar, de modo convincente a um observador externo, as áreas misteriosas às quais éramos conduzidos” (BROOK:2000,306)

ii Notoriedade que não deixa de se constituir, na lógica do teatro empresa (que é, ao fim e ao cabo, a lógica do capital) em um valor agregado, um valor de troca.

iii Como afirma o professor José Manuel Lázaro de Ortecho (ORTECHO, 2010, 23): “a hierarquia dramaturgo – produtor/encenador – atores – técnicos é desmontada”.

ivUtilizaremos aqui o conceito de grupo apresentado por Kil Abreu: “grupo/agrupamento – a primeira coisa é que um Grupo de teatro – nos sinaliza a prática dos anos recentes – não é o mesmo que um agrupamento de artistas que se reúnem para fazer um trabalho determinado. O que marca a existência do grupo, no sentido que nos interessa, é uma Experiência comum colocada em perspectiva. Qual seja, a de um tipo de organização que não tem como finalidade a criação de pontual de um evento artístico, ainda que um evento, um espetáculo, por exemplo, possa estar entre os planos, como de fato, quase sempre está. Trata-se, antes, de um projeto estético, de um conjunto de práticas marcadas pelo procedimento processual e em atividade continuada, pela experimentação e pela especulação criativa, que pode inclusive se desdobrar ou alimentar desejos de intervenção de outra ordem que não a estritamente artística.”

v Por isso é comum que os grupos “adotem" a comunidades que os abriguem, e com um pouco de sorte e muita dedicação, sejam por elas “adotados”. Como podemos ver nas ações do grupo Pombas Urbanas, segundo informações em seu sítio eletrônico: “Com sua vinda à Cidade Tiradentes em janeiro de 2004, o grupo mergulhou no universo do desemprego, exclusão, da deterioração do ser humano em busca de sobrevivência. Durante 3 anos, dedicou-se intensamente à estruturação do Centro Cultural Arte em Construção e em 2.007, realizou a montagem de um novo espetáculo, ‘Histórias Para Serem Contada’ que deu voz a muitas das histórias e conflitos que o grupo, vivendo no bairro Cidade Tiradentes, acompanhou de perto. É desta forma que os integrantes do grupo Pombas Urbanas compreendem e exercem sua condição de artistas: situando sua pesquisa e produção teatral junto à sociedade com o desenvolvimento de propostas práticas e concretas de acesso à Arte, desenvolvimento de conhecimentos e ferramentas para que populações historicamente marginalizadas possam produzir teatro e refletir sobre sua realidade por meio da Arte.”

vi Segundo o dramaturgo Luís Alberto de Abreu, ele próprio um dramaturgo que trabalha em processos colaborativos “a função social de um artista está intimamente ligada à importância, sempre menosprezada, das linguagens artísticas na transformação do ser humano e da sociedade (…) Querendo ou não, os artistas têm poder e responsabilidade no que se refere à fixação dos valores presentes na transformação do mundo ou em sua manutenção” (ABREU: 2010,29)

vii Para se ter noção do tempo de existência de alguns grupos: Grupo Pombas Urbanas, 22 anos de existência (http://www.pombasurbanas.org.br/); Buraco d'Oráculo, 10 anos (http://www.buracodoraculo.com.br/); Brava Companhia, 10 anos (http://blogdabrava.blogspot.com/); Núcleo Pavanelli, 11 anos (http://www.nucleopavanelli.com.br/site/historico); Dolores boca Aberta Mecatrônica de Artes 09 anos (http://doloresbocaaberta.blogspot.com/2009/06/oficina-de-teatro-no-dolores.html); Pia Fraus, 25 anos (http://www.piafraus.com.br/perfil.php?action=historico); Parlapatões Patifes e Paspalhões, 21 anos (http://www2.uol.com.br/parlapatoes/espetaculos/historia/index.htm). Esses são alguns grupos de referência, apenas em são Paulo, entre tantos outros grupos pelo país todo.

FOTO
Henri Cartier-Bresson

BIBLIORAFIA
ABREU, Kil. A Dialética das condições e a fatura estética no teatro de grupo. In Subtexto revista de teatro do Galpão Cine Horto. Ano 5, dez 08, número 05.

ABREU, Luís Alberto de. O Dramaturgo e suas funções. Rebento: revista de artes do espetáculo/ Universidade Paulista “Julio de Mesquita Filho”. Instituto de Artes, São Paulo. Número 2, julho de 2010

BROOK, Peter. Fios do tempo. Ed. Bertrand Brasil. São Paulo. 1998

ORTECHO, José Manuel lázaro de. A democratização da dramaturgia no teatro contemporâneo. Rebento, revista de artes do espetáculo. São Paulo. Número 2, julho de 2010

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